Raul
encheu o copo de vinho. Na rádio soavam músicas sertanejas do Bruno e Marrone.
Ele respirou fundo. Estava razoavelmente entorpecido pela bebida. Sentia-se
solitário e infeliz. Sentia-se cansado. Engoliu mais um pouco de vinho e deixou
o álcool fluir por seu corpo acalmando-o e descansando-o. Do lado de fora da
casa da fazenda os grilos cantavam animadamente. Raul pegou a taça de vinho e
levantou-se trôpego caminhando pela solitária fazenda. Precisava ter coragem.
Enquanto caminhava lentamente indeciso, pensava se estava fazendo a coisa
certa... Já estava suficientemente bêbado. Precisava acabar com aquilo de uma
vez. Precisava por um fim naquela novela melodramática. Andando tropegamente em
meio ao casarão agora vazio. Ele sentia-se cansado e confuso. Deveria realmente
cometer suicídio naquele lugar? A fazenda ainda lhe trazia tantas lembranças
boas. Lembranças de quando ainda era casado com Manuela. De quando eram jovens
e felizes e de quando o filho corria pela fazenda, miúdo e faceiro. Hoje Jorge
já era grande e havia casado- se com uma linda mulher. Tinha um lindo casal de
filhos. Era um rapaz feliz. Não precisava mais dos conselhos e da ajuda de um
velho solitário como ele para manter-se independente em um mundo tão cruel como
aquele... Bem... havia o casal de netos. Apenas duas crianças. Dois
jovenzinhos. Eles também não precisavam dele. Tinham o filho Jorge que
consolaria- os quando soubessem da morte trágica do avô. E então... tudo
ficaria bem... Ele não teria mais problemas... A vida sofrida e dolorosa
afetada pela forte depressão e os ineficazes remédios que faziam-lhe tão mal,
teria seu fim. Tudo apagaria-se pela eternidade. Uma eternidade sem pensamentos
ou problemas. Sem dor ou sofrimento. Vamos! Acabe logo com isto seu velho
estúpido! Não seja fracote!
Murmurou a voz feminina e sedutora em seu ouvido. A voz que induzira-o aquele
momento de desilusão. Que alimentara-o com a idéia do suicídio.
Estava
frio. O vento uivava do lado de fora do casarão agitando os eucaliptos. Vamos
não seja covarde. Não seja fracote. Logo perderá a coragem! Tem de ser rápido.
Ele teve a impressão de ver algo movimentar-se do lado de fora da janela
entreaberta. Haveria mais alguém na fazenda? A morte estaria lá para busca-lo? Eu estou aqui. Como é a morte? Como é
sua face? Mate-se e verá seu velho louco. Encontrará- se comigo. Eu vou te
mostrar muitas coisas. Muitas coisas legais. Ele abriu a porta. Queria
sentir a chuva gélida pela última vez. Queria sentir as gotas da chuva
molharem- lhe a cabeleira. Deixe disto velho fracote! A
chuva molhava- lhe os cabelos brancos e ralos. O vento chiava lentamente. Agora
ele estava úmido, o aroma delicioso da relva e das hortênsias chegou-lhe ao
nariz com frescor. Ele caminhava decreptamente pela pradaria. Ele sorriu pela
primeira vez em um ano. Era bom estar alí na fazenda onde aconteceram tantas
coisas... É sua última vez. Aproveite um pouco. Aproveite seu os últimos
instantes desta vida tão dolorosa que apagará-se hoje... Ele caminhou
pelo jardim como um menino. Como a criança que fora a alguns anos atrás. As
cores eram tão vividas. A chuva molhava-o. Será que realmente sua vida era tão
má assim? Enquanto aos poucos a chuva deixava de tilintar docemente sobre o
telhado e os pássaros cantavam alegremente nas centenárias árvores que
assombreavam-lhe enquanto o sol voltava a brilhar lentamente... Enquanto isto,
ele pensava se realmente era uma boa idéia abster-se de tantas cores e belezas. Mas
era preciso. Ele sentia o quanto isto era doloroso. Ver aquela pradaria e não
poder correr em meio a imensidão. Ele tinha uma fazenda tão linda!
Somente agora ele percebia que toda aquela beleza não encantava-o mais.
Toda aquela imensidão lhe trazia só infelicidade e lembranças de tempos outrora
felizes. Ele não podia desistir. Não no último instante. Era-lhe tão dolorosa a
morte de Manuela. A vida sem seu olhar gentil, sua voz calma. Eles amaram-se
eternamente. E agora, aquela casa grande, aquele assento vazio na mesa de café
da manhã, a lembrança dos últimos momentos, do último sorriso... Será que
encontraria-se com Manuela quando perdesse enfim a vida? Será que algum dia
teria esta alegria? Ele olhou para o jardim respirando fundo amargurado e
triste. Porque aquela dor que sentia era tão pungente? Porque não conseguia
livrar-se dela.
Ele
pegou a arma calibre trinta e dois. Apenas um disparo e toda aquela dor teria
fim. Ele estava decidido! Era hora de morrer. Já vivera demais. Tinha de aceitar que os anos
felizes haviam terminado. Ele sentou-se sobre a cadeira. Os olhos
estavam entristecidos. Infelizes. Observou a paisagem vazia pela última vez.
Colocou o revolver na boca abrindo-a com amargura e dor em seguida. Era o
momento! Armou o revolver! Era a hora! Iria despedir-se daquele mundo tão
cruel! A arma era tão fria. Tão gélida e mortal. De-repente ele
sentiu-se horrorizado. Enojado. Como chegara aquele ponto? Ao fundo do posso?
Sentiu-se infeliz e desesperado! Aquilo era loucura. E o filho que
tanto amava-o, como ficaria? Se ele desce cabo da própria vida iria para o
inferno! Iria pagar por sua ousadia nas chamas incandescentes do mal por toda a
eternidade. Estaria enlouquecendo? Porque aqueles pensamentos sombrios e
mortais vinham-lhe a mente todo momento? Ele estava doente! Precisava
tratar-se! Curar-se da depressão! E então novamente a vida teria sentido. Ele
precisava sair da fazenda o mais rápido possível! Antes que os pensamentos
obscuros voltassem e ele cometesse uma loucura! Como pudera ser tão cego? Tão
estúpido. Ele levantou-se apressadamente. Caminhou em busca de um copo de água
na cozinha. Engoliu a água com as mão trêmulas. Ela estava alí! Ele sabia! A
morte estava alí! Naquela fazenda. Espreitando-o... Sondando-o... buscando-o...
Algo de muito ruim estava por perto. Transmitindo-lhe aqueles pensamentos
sombrios! Algo mal o seguia. Algo mal queria tirar-lhe a vida. Queria que
cometesse o ato mais maldito de todos. Ele viu algo mexer-se entre as sombras
como que rastejando. Os pensamentos estavam voltando... Não. Aquilo era imaginação sua!
O mal não existia. Tudo o que existia era aquele mundo torpe e hediondo onde
seres humanos inconsequentes inventavam histórias absurdas para sentirem-se
felizes. Era isto! Com certeza! Ele desejava a morte. Ele sentia-se a vontade
com ela. Ela era a única resposta! Demônios não existiam, existiam?
Será que aqueles pensamentos obscuros eram obra de criaturas das trevas?
Criaturas das trevas que haviam talhado uma batalha épica, com Deus e descido
ao abismo profundo, voltando depois para destruir a atormentar a humanidade?
Ela sentia uma presença malévola em sua mente induzindo-o. Conduzindo-o para a
morte! Para o abismo sem fim!
Ele
caminhou até o armário. Segurou com força a chave do carro. Algo estava alí!
Algo estava enlouquecendo-o. Seria verdade o que diziam os espiritualistas?
Existiriam mesmo os espíritos obcessores? Era o que ele perguntava-se enquanto
seguia apressadamente até o carro. Espíritos que faziam pessoas como reféns de
sua ira doentia? Espíritos que levavam pessoas a depressão e ao suicídio por
vingança ou meramente por prazer. Ele colocou a chave na fechadura do carro.
Algo movimentou-se atrás dele. Ele sentiu que algo ruim encarava-o parado
próximo ao lago. Flutuando sobre as
águas morbidamente. Ele não queria olhar. Ele não desejava faze-lo! No
entanto, tomado por curiosidade, Raul viu-se virando-se lentamente em direção a
estonteante e vivida paisagem do lago iluminado pela luz palida do sol. Lá
estava ela! Oh céus! Manuela! Era exatamente como em suas lembraças. Era a
esposa que havia falecido, mas estava mais nova! Com cerca de vinte e três
anos. Como na época em que haviam conhecido-se. Ela usava um vestido branco e
flutuava em meio as árguas esverdeadas do lago!
-
Eu vim buscar-te meu amor. –disse ela com voz doce.- Já passou-se
muito tempo desde que vimo-nos pela última vez. Quando morri de tuberculose.
Agora quero buscar-te. Voltei para que fiquemos juntos pela eternidade. Não
sabe por quanto tempo eu esperei por isto! Venha até mim meu grande amor.- de-repente em um
desvario de alegria ele sentiu-se extremamente contente. Manuela estava alí
para leva-lo. Leva-lo com ela.- Venha meu querido. Esqueça todo mal que este
mundo fez-te. O lugar para onde vamos é maravilhoso. Lá terá o descanso que
tanto procurou. Venha comigo, vamos viver em paz por toda a eternidade.- ele
caminhava em meio ao lago, afundando-se em meio as águas esverdeadas e gélidas.
Mas isto não importava mais. Manuela viera viera buscar-lhe e ele não recusaria
o seu convite. Ele foi para o fundo das águas deixando estas engolirem-no
lentamente... Manuela encarava-o sorrindo. Um sorriso que ele nunca vira em seu
rosto e que lhe parecia estranho. Seria um sorriso de escárnio? Aquela seria
mesmo Manuela? Ele sentiu uma força sobrenatural
puxa-lo para o fundo das águas em meio
as pedras e algas. Não! Aquela não era Manuela! Ele sabia-o! Desesperadamente
começou a lutar contra as forças sobrenaturais que puxavam-o bruscamente a cada
vez mais para o fundo do lago. Com muito esforço ele conseguiu emergir
novamente para o leito do rio. Não pode desistir agora! Vais morrer! Vais
morrer velhote. Eu vou levar-te! Ele caminhava apressadamente para fora
do rio com as pernas doloridas e torpes. Você não sai desta fazenda hoje velho
estúpido! O vento gélido açoitava-lhe as roupas molhadas e sujas. Ele
precisava chegar até a caminhonete. Precisava sair antes que a coisa o pegasse.
Velho
retardado! Porque não se mata logo! Porque tem de fazer as coisas serem tão
difíceis! Manuela com a boca coberta de sangue encarava-o de cima da
árvore. Ele desviou o olhar aterrorizado. As pernas doíam e ele perdia as
forças lentamente. Estava morrendo. A criatura maldita estava sugando-lhe a
vida lentamente. Seu velho viado! Não há mais nada para você na Terra. Eu não
permitirei que continue vivo. Agora você é meu! Meu! Onde ele estava?
Ele já havia passado por aquela porteira antes. Estava muito próximo da
caminhonete vasculhou o bolso em busca da chave. As pernas pernas lhe doíam e
estavam cada vez mais pesadas. Agora ele arrastava-se em meio a grama e as
pedras lhe esfolavam a mão. A chave do carro não se encontrava em nenhum de
seus bolsos. Ele estava morrendo. As mãos precisavam manter-se firmes. Precisavam
ajuda-lo a arrastar-se para a caminhonete já tão próxima. Os olhos
arreganharam-se. O coração doía. Doía terrivelmente. Ele contorcia-se no chão.
Venha velho desprezível. Venha para mim seu inútil. Gargalhadas das trevas
ecoavam em seus ouvidos. A escuridão tomava conta de seu corpo lentamente...
Uma Semana Depois...
Só
havia escuridão e medo.
Ele
estava apreensivo. Não queria abrir os olhos. O corpo lhe doía terrivelmente.
Ele olhou sobre a visão embaçada. Onde diabos encontrava-se?
-
Droga!- exclamou arquejante. Teria sido um pesadelo aquele dia terrível na
fazenda. Ele não mais desejava suicidar-se. Estava certo que com aquele
pesadelo aprendera a horrível lição sobre não deixar-se dominar por energias
obscuras. Ele sorriu. Estava tudo bem. Foi apenas um terrível pesadelo. Uma
tortuosa lição.
Mas
onde estava. Observou o quarto atento. Não era luxuoso, mas também não era
simples. A porta abriu-se lentamente. Ele ouviu o barulho de crianças e de um
rapaz. Seu filho Jorge entrava no quarto com um sorriso radiante acompanhado
pelo casal de netos:
-
Finalmente acordou pai. Como esta?
-
Onde es...- disse surpreendendo-se ao ver como a voz estava fraca e abatida.-
Onde estou querido?
-
No hospital pai. Encontrei o senhor caído no declive próximo ao lago. Estava
desacordado. Não sabe como desesperei-me quando vi o senhor assim. Ainda bem
que os paramédicos eram experientes e graças aos céus o senhor esta num quadro
estável agora!- exclamou o jovem rapaz com olhar melancólico.
Ele
sorriu. Passara por uma experiência de quase morte. E agora sabia que não
desejava mais morrer! Os olhos ficaram pesados lentamente. Neste instante Jorge assumiu um
rosto macabro. Sombras tomaram conta do quarto. Gargalhadas cavernosas ecoavam
das janelas e de baixo da sua cama.
-
Maldito.- disse Jorge com o rosto disforme.- Não acredito que pensou que estava
livre de mim! –e gargalhou macabra e sombriamente. Enquanto tudo virava medo,
escuridão e maldade...
Fim
Muito bem escrito e envolvente esse conto adorei o final. Como sempre vc é o melhor.Bjs.
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